14.12.07

nudez

nada do que trazia despido parecia conveniente para receber o deslumbramento de ti, por isso deu-me para inventar:

coloquei asas onde outrora reinavam circulares braços, saqueei a epiderme dum poema exótico e maltratado (para que te crescesse o entusiasmo), coloquei olhos no corpo, para rever de lés a lés os teus segredos e decorar o teu perfil... os poros fechei-os um a um, para que não me soprasse nenhum vento, nenhuma aflição, no interior do corpo.

exigias-me a nudez dos amantes, aquela parte de corpo, que se perde quando se dá. eu gostava de ti ao sol, quando transpiravas luz e queimavas o medo.

deu-te para praticar. com alguma habilidade, rabiscaste no interior do meu coração a palavra AMOR. disseste que nunca a tinhas escrito desta forma, que sempre falhara o pretexto para compor o último tema.

a mim, faltara-me a elocução para levar a preceito a descoberta. por isso dormi sem a tua visita, tive sonhos, tremi.

sem temor, como quem sabe segura a palavra escrita, deixaste-me uma pequena morte no sangue, que é como quem diz, nos olhos, nos ouvidos, na boca.

talvez regresses com tinta durável, promessas de permanência. eu acreditarei
.

sobre ausências....

teria dito que o fruto era doce, que as mãos estavam cheias e que nada faltava na paisagem.

teria dito também que tanta satisfação aniquilaria de vez os dedos e com eles os pianos, as melodias por inventar.

teria dito que mesmo assim, era bom comer cerejas frescas, nuns lençóis muito usados (e isso nem sequer pareceria feio...) e deixar a noite suavizar o corpo.

30.11.07

rasgar

disseste que se rasgasse cada um dos meus cabelos, reconstruirias as nuvens e com elas novos cenários.

eu não acreditei, mas por via das dúvidas, sentei-me e executei a morosa tarefa. Demorei muito tempo, lembro-me do sol e da chuva. lembro-me dos dedos muito cansados e muito velhos, rasgando cuidadosamente, cada cabelo. lembro-me de sentir a noite e depois o dia. lembro-me de ter a sensação de ver passar a vida inteira e repetir um a um os meus gestos.

lembro-me também que não chegaste a voltar.

24.10.07

porque hoje o dia tem o teu cheiro

..."falo-te das coisas que amo, para que as ames comigo"... eugénio de andrade
é no ouvido que deves segredar o essencial, no entanto é por dentro do coração que deves espalhar essências raras do corpo- do teu corpo.
partilho contigo este segredo cheio de intimidade, para que seja único e eterno cada momento. para que a casa, seja sempre um lugar possível a cada paragem. para que não estranhemos a decomposição das paisagens, porque o amor é mutável e nós somos eternos no que dele se altera.
e para que fiques muito tempo, mesmo quando te ausentas.

19.9.07

16. sarah kane. hoje. porque sim. CRAVE. O que sera? (a flor da pele). chico buarque

A- E eu quero brincar às escondidas contigo e dar-te as minhas roupas e dizer que gosto dos teus sapatos e sentar-me nos degraus enquanto tu tomas banho e massajar o teu pescoço e beijar-te os pés e segurar na tua mão e ir comer uma refeição e não me importar se tu comes a minha comida e encontrar-me contigo no Rudy e falar sobre o dia e passar à máquina as tuas cartas e carregar as tuas caixas e rir da tua paranóia e dar-te cassetes que tu não ouves e ver filmes óptimos, ver filmes horríveis e queixar-me da rádio e tirar-te fotografias a dormir e levantar-me para te ir buscar café e brioches e folhados e ir ao Florent beber café à meia-noite e tu a roubares-me os cigarros e a nunca conseguir achar sequer um fósforo e falar-te sobre o programa de televisão que vi na noite anterior e levar-te ao oftalmologista e não rir das tuas piadas e querer-te de manhã mas deixar-te dormir um bocado e beijar-te as costas e tocar na tua pele e dizer quanto gosto do teu cabelo dos teus olhos dos teus lábios do teu pescoço dos teus peitos do teu rabo do teu
e sentar-me nos degraus a fumar até o teu vizinho chegar a casa e se sentar nos degraus a fumar até chegares a casa e preocupar-me quando estás atrasada e ficar surpreendido quando chegas cedo e dar-te girassóis e ir à tua festa e dançar até ficar todo negro e pedir desculpa quando estou errado e ficar feliz quando me desculpas e olhar para as tuas fotografias e desejar ter-te conhecido desde sempre e ouvir a tua voz no meu ouvido e sentir a tua pele na minha pele e ficar assustado quando estás zangada e um dos teus olhos vermelho e o outro azul e o teu cabelo para a esquerda e o teu rosto para oriente e dizer-te que és lindíssima e abraçar-te quando estás ansiosa e amparar-te quando estás magoada e querer-te quando te cheiro e ofender-te quando te toco e choramingar quando estou ao pé de ti e choramingar quando não estou e babar-me para o teu peito e cobrir-te à noite e ficar frio quando me tiras o cobertor e quente quando não o fazes e derreter-me quando sorris e desintegrar-me quando te ris e não compreender por que é que pensas que eu te estou a deixar quando eu não te estou a deixar e pensar como é que tu podes achar que eu alguma vez te podia deixar e pensar em quem tu és mas aceitar-te na mesma e contar-te sobre o rapaz da floresta encantada de árvores anjo que voou por cima do oceano porque te amava e escrever-te poemas e pensar por que é que tu não acreditas em mim e ter um sentimento tão profundo que para ele não existem palavras e querer comprar-te um gatinho do qual teria ciúmes porque teria mais atenção que eu e atrasar-te na cama quando tens de ir e chorar como um bebé quando finalmente vais e ver-me livre das baratas e comprar-te prendas que tu não queres e levá-las de volta outra vez e pedir-te em casamento e tu dizeres não outra vez mas eu continuar a pedir-te porque embora tu penses que eu não estou a falar a sério eu estou mesmo a falar a sério desde a primeira vez que te pedi e vaguear pela cidade pensando que ela está vazia sem ti e querer aquilo que queres e achar que me estou a perder mas saber que estou seguro contigo e contar-te o pior que há em mim e tentar dar-te o meu melhor porque não mereces menos e responder às tuas perguntas quando deveria não o fazer e dizer-te a verdade quando na verdade não o quero e tentar ser honesto porque sei que preferes assim e pensar que acabou tudo mas ficar agarrado a apenas mais dez minutos antes de me atirares para fora da tua vida e esquecer-me de quem sou e tentar chegar mais perto de ti porque é maravilhoso aprender a conhecer-te e vale bem o esforço e falar mau alemão contigo e pior ainda em hebreu e fazer amor contigo às três da manhã e de alguma maneira de alguma maneira de alguma maneira transmitir algum do / esmagador, imortal, irresistível, incondicional, abrangente, preenchedor, desafiante, contínuo e infindável amor que tenho por ti.” Sarah Kane, in Falta (Crave)

Chico Buarque -erá que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mendigo, me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os tremores me vêm agitar
Que todos os suores me vêm encharcar
Que todos os meus nervos estão a rogar
Que todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz implorar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

15.9.07

17.

deixa que te agarre pelo braço e vamos ver as ondas dos mares e dos cabelos. deixa que te compre um retrato novo ou pouco usado, como aquele que vimos ontem e gostaste tanto. deixa que te trate pelo nome que

11.9.07

Tratado para a reinvindicação do real


Quero dizer-te que:
os braços, os dedos, os dois cotovelos e a sua pele enrugada, os pelos descolorados, o nariz aquilino e grave, os olhos.


Quero dizer-te que:
as artérias, o sangue, a água da saliva, os rins, o estômago, cheio ou vazio.


Quero dizer-te que:
o batimento cardíaco, o sono trocado, a ansiosa transpiração, o aperto no coração, as dores de ovários.


Quero dizer-te que:
o ideal romântico, a imaginação acesa, a desordem interior, a certeza de continuar, a perturbadora timidez.


São pura e absolutamente reais.

4.9.07

nenúfar na memória breve. hoje ouvi dizer que faria sol, do outro lado da península do desejo. Ouvi dizer que "hoje" é um lugar demorado e tardio

e era noite há muito tempo, ou assim me parecia... tornara-se noite no repente que traz um poema e desfaz as mãos em caruma (qualquer coisa que se queima, qualquer coisa que se incendeia... e a vida volátil, ri-se irónica, por cima dos meus ombros agrestes).
e vai-se a mácula e rasgo as cartas que escrevi dentro da cabeça ou nas paredes do corpo (confundo a anatomia, tenho dormente o cérebro e talvez durma muito, quando passares por completo) . Todo ele - O CORPO- cheio de cartas por abrir, outras por escrever, outras por baralhar... e eu que baralho tudo, que penso saber importantes métodos de salvação, saio à rua e estou vazia, oca.
deixas então o espaço possível, ultrapassas-me os braços e és muito veloz (e eu tenho todos os sustos despertos desde então, porque não voltas a imaginar divãs, nem eu volto a ser diva, ou qualquer coisa de muito humano, muito simples, muito fácil de amar) . Dizes-me que afinal, os poemas são das matérias difíceis, as mais fáceis de desperdiçar. Não ouves o outro lado da voz, mas estás seguro e eu tenho-te inveja e uma incomparável ternura.
Apetece-me balear-te a voz com discursos surpreendentes, comover-te de espanto, ver abundante água a pass(e)ar, comer gelados de chocolate, inventar sopas e chinesas, tocar pianola e folhear-te os olhos.
Hoje apetecia-me que tudo acon- tecesse.

27.8.07

Resoluções definitivas

Não atires a última pedra.
Atira a primeira que vires, e certeira.

Considerações dispersas


- eu volto, como quem regressa a um disco muito antigo, selado numa memória. O caminho não é doce, mas seduz-me a aridez onde escondes o mais brilhante de ti.

- tenho hoje vinte braços à minha volta e faz-me falta um último abraço.

- não me disseram ser simples o teu caminho, não pensei ser fácil o labirinto da tua pele, mas agora que me vejo transformada na supra-projecção do meu delirio e a rua fica fria como gelo, gostava de voltar atrás e apagar algumas linhas do teu caderno, onde me desenhaste com outro rosto (um rosto que não é o meu).

26.8.07

The Smiths - There is a light that never goes out

Take me out tonight
Where theres music and theres people
And theyre young and alive
Driving in your car
I never never want to go home
Because I havent got one
Anymore

Take me out tonight
Because I want to see people and i
Want to see life
Driving in your car
Oh, please dont drop me home
Because its not my home, its their
Home, and Im welcome no more

And if a double-decker bus
Crashes into us
To die by your side
Is such a heavenly way to die
And if a ten-ton truck
Kills the both of us
To die by your side
Well, the pleasure - the privilege is mine

Take me out tonight
Take me anywhere, I dont care
I dont care, I dont care
And in the darkened underpass
I thought oh god, my chance has come at last
(but then a strange fear gripped me and i
Just couldnt ask)

Take me out tonight
Oh, take me anywhere, I dont care
I dont care, I dont care
Driving in your car
I never never want to go home
Because I havent got one, da ...
Oh, I havent got one

And if a double-decker bus
Crashes into us
To die by your side
Is such a heavenly way to die
And if a ten-ton truck
Kills the both of us
To die by your side
Well, the pleasure - the privilege is mine

Oh, there is a light and it never goes out

Re - Visitar a Pó - Esia

http://www.aveiro.tv/scid/aveirotv?refID=0|5|386|0

22.8.07

sobre o avesso


o que me ensinaste foi precioso.

ensinaste-me por exemplo que o avesso de qualquer coisa, não é sempre o seu contrário.

que o lado de lá do amor, não é o desamor.


e que por vezes, o avesso não regressa a lado nenhum.

8.8.07

Repetir a cidade - No repeat, baby. No repeat.

Nesse dia demos muitos passeios e ele parou muitas vezes para me contar o que os seus olhos viam. Quase sempre viam coisas que primeiramente eu nem reparava. Achei que deviamos repetir aqueles passeios, mas ele não voltou a aparecer na cidade... OU, a cidade não voltou a aparecer em mim. SIMPLES COMO A CLARIDADE É A COISA MAIS DIFÍCIL DE ENCONTRAR, disse o Mário H. Leiria... e PRATICAR, digo eu em surdina.
(Importante: ler ao som de Beach Boys, "God only Knows" ou Supremes ,"Baby Love" )

Porque é verão... Considerações mínimas e solarengas

os turistas . paco minuesa

- Um turista bonito, nunca vem sozinho.

- Hoje fui actriz em dois filmes... de turista.

Abandono-te agora que a noite cai no interior da pele


5.8.07

alto, muito alto OU o meu projecto é construir-te asas

"Klaus é um homem alto. Conheceu Johana porque ela olhou por cima de uma sebe verdíssima e olhou por cima de uma Primavera ainda mais cverde do que a sebe. Eles costumavam brincar:
Se tu não fosses tão alto, não te teria visto por cima da sebe.
E Klaus dizia a Johana:
Se eu não fosse tão alto, a sebe seria mais baixa."
Gonçalo Tavares in Um homem: Klaus Klump
Enquanto o teu coração ardia na palma das minhas mãos (quente, quente, muito quente), transportavas nos olhos uma luz profundissima, que cegava o deslumbramento. Eu passava horas a mirar-te na minha caixa de brilhos mentais.
Era também de pés enterrados na terra que caminhavas. Eu sabia que era um hábito apreendido e amargo, mas o que eu gostava era de te inventar asas no alto da cabeça, tornar-te aeroplano e voar contigo numa folha de papel ou de alface, tanto faz.
Também eras muito alto. Isso era cómico, porque tropeçavas nas árvores e os pássaros aproveitavam-se de ti, para construirem casas e fomentarem a espécie.
Tu rias da tua des- GRAÇA, desajeitado, com um fato tão comprido que ocupava os teus dez dedos de tecido inútil (sei agora que aqueles longos tecidos onde enredavas os gestos eram apenas para te esconderes do medo, para seres mais corajoso e sagaz, para pensares com mais... muito mais... velocidade). Eu ouvia-te, mas os ramos da atmosfera seduziam-me mais do que as palavras e eu queria escapar-me, volátil, e ensinar-te a voz do vento.
Nada feito, eras feito de bolo de bolacha, sempre com camadas diferentes e dificéis de penetrar. A minha curiosidade vacilava... talvez fosse teu o caminho por entre o arvoredo. Eu fico na montanha ou na planície. Sempre a ver-te, muito acima ou muito abaixo, debaixo dos meus olhos, ou enterrado nas minhas pálpebras., nas linhas da mão ou nas linhas do céu. Eu fico.Observo.
E sim, o meu projecto era construir-te asas.

18. "Estou um pouco no interior do que arde, apagando-me devagar e tenho sede"- daniel faria



29.7.07

um piano para três

Era em comoção que observava o seu movimento circular, metamorfoseada em bola-espelho, na cambeante luz do sol.

Inundava-me um mar muito antigo, lendário, narrado há muito tempo por belos seres marinhos e eu meditava silenciosamente um poema que nunca mais me lembrarei.


Só depois de três lágrimas muito quentes, voltava a sorrir e ela sorria comigo e eramos uma - UNA- extremamente iguais. A oficina desmantelada, quebrava-nos a medula e era triste observar os corpos abandonados, transbordando amor, delicados-deliciados pelo piano inventado a três.


Ele era o outro habitante, quedado na plateia, assemelhava-se ao que de mais belo poderei recordar. Para ele tomei de empréstimo al berto, Nému ,e carinhosamente abracei-lhe o coração.

Um no outro, era na transparência , que inventávamos o movimento, respirando o ar, atravessando os corpos alheios (cont. ....ou não)

27.7.07

I

hoje passeei no dorso do teu delírio pela última vez.

apagaste-me a vocação de amante (i-remediavelmente).

(apesar disso, «algo em mim/caminha/ ao teu encontro» , como disse o alberto...pimenta)

19. Hoje gostava tanto de ter dito coisas que não disse


26.7.07

22.

de

20. "nada se cria, nada se perde, tudo se transforma"

tudo passa, baby... (composição poética sobre a multiplicação das passagens, qual milagre bíblico imaginado. Trata-se de Real-Idade)


- sete caminhos e um barco de vento.
- um campo aberto onde começa o escuro dos sentidos;
- as minhas próprias mãos que pouco pensam;
- amores perfeitos na gola de um casaco;
- a imprevista meteorologia das paixões;
- uma mística ilha de centauros;
- uma língua no sonho da saliva.

"TUDO ISTO PASSA, BABY. TUDO ISTO PASSA..." a. pimenta

- dez comboios em partida simultânea;
- uma caleidoscópio de pálpebras;
- uma praça e o amor em estado de sítio;
- um imenso salão de baile;
- corpos embriagados a falar de amor;
- uma alegria suspensa na solidão;
- o mundo em brutal compressão;

"TUDO ISTO PASSA, BABY. TUDO ISTO PASSA..." a. pimenta

- uma grande nuvem de vermes-almas
- filmes de artista
- uma carrinha de três rodas
- um japonês paixonado pela sua namorada virtual;
- o rigoroso inverno de 1927- 1928
- uma mulher sem sombra

"TUDO ISTO PASSA, BABY. TUDO ISTO PASSA..." a. pimenta

"Isto passa. tudo isto passa. tudo isto passa pelos teus olhos. ou: os teus olhos passam.os teus olhos passam por tudo isto, baby" A. Pimenta


Ausente como um tentador sopro


15.7.07

"Como um súbito asfalto que nos subisse ao coração"... frase encontrada, em pleno caminho, alma acesa às dezasseis horas do dia ausente.

yves klein . revolução azul


"que os lagos gelam a partir das margens / e o homem a partir do coração" . Luís Miguel Nava



"Vulcão é a lição de uma errância pelo deserto."


Dezasseis horas de dia incerto. O corpo circula impedindo a circulação do tráfego interno. De poema suspenso no cérebro, procuro o sono (ele escapa-se, escapa-me, ESCARPA-SE sob um planalto feito à medida egotista do pensamento). A hora de visitas prossegue, o espanto é uma benesse. Eu ainda estou por aqui, mãos cheia de violetas e "amarelos malmequeres".


Rematando a viagem em Nava: "E o que acontece em cada uma das suas páginas-jornadas até ao rompimento da luz só pode ser o amor em que "havemos de arder juntos" .



14.7.07

o amor não tem tempo, e dura no que amaste (antónio franco alexandre) .ode às paixões e mágoas instaladas na memória

E este é um poema de amor encomendado de véspera
embrulho-me nele
acordo com a tua boca húmida nos cabelos
não direi que te amo.
António Franco Alexandre

trajecto, elevação, metáfora, metamorfose, alusão esquivo, autêntico, intenso, rude, escavação, amor, abandono, colagem...

55 55 55 55 55 55 55 55

Chagall

Durante horas e dias, ele passeia vagarosamente, dentro de si. À sua velocidade, séculos depois, ela chamaria AMOR.

Ele apreciava a lentidão do pensamento veloz. Saboreá-la, pressentir-lhe os segredos, e depois quedar-se novamente, sentado numa grande cadeira transparente, que ocultava o seu primeiro esqueleto. Ela conhecia-lhe a segunda e a terceira pele, os mil esqueletos, o calor dos seus olhos.


Ele observava o mundo através duma grande janela. Do outro lado do vidro, passeando sob a planicie, a voz dela contava-lhe o que ambos os corações viam:


"Casas contornadas de presenças, gatos e cor. Os gatos brilham muito no escuro, apesar de ser dia. Dentro da rua, as pessoas circulam. Uma criança leva um balão e sorri. Uma mulher chora com muitas lágrimas, mas ninguém se comove. O trânsito aflito segue e segue e segue. Um homem abraça uma mulher, depois segura-lhe a mão. Vai."


Ele comove-se. Depois senta-se novamente na sua grande cadeira.Ela convida-o a passear no seu astro pessoal. Ele vai, sucessivamente, multiplicando o sol. 55 vezes, diriam mais tarde, sorrindo, um ao lado do outro, um dentro do outro, aquáticos e plenos, como o "dia primeiro", o princípio de cada um.








13.7.07

Porque do coração cuida-se e gasta-se... incessantemente.



"deverias não a conhecer e tê-la encontrado em toda a parte ao mesmo tempo, num hotel, numa rua, num comboio, num bar, num livro, num filme, dentro de ti, em ti, ao acaso do teu sexo erguido na noite que procura um lugar onde se meter, onde se libertar do choro que o enche."

Marguerite Duras . Textos Secretos . A doença da morte

12.7.07

"Acordamos, já sei, transparentes e sábios, do outro lado da criação do mundo" . antónio franco alexandre



Estava em Caminha.


É uma terra densa, bela, difícil de respirar.

Caminhava em Caminha (sem caminha nem descanso) e encontrei um lugar de livros, que é a casa onde os livros escolhem habitar, vulgo biblioteca.


Foi em caminha que encontrei al berto e devorei antónio franco alexandre. um e o outro, lado a lado, próximos, colados, escrevendo sobre moradas variadas, na pelee nos oceanos... em silêncio.

Ali, os dois, quietos, comoviam. Eu chorei com todo o silêncio que o sagrado exige (e pensei gritando, com a atmosfera sinistra das minhas células, É ESTE O SILÊNCIO, depois calando-me, vendo os planaltos e a agressividade da alma elevada a poema).

ligeiramente suspenso, pensei:

nunca mais poderei esquecê-lo....

antónio franco alexandre

24. Escrevo a tua morada, mas sei que me egnaongano

"

6.7.07

25.

Era uma casa, como direi..... ABSOLUTA.

So in a manner of speaking... Tuxedomoon em repeat na rádio mental


In a Manner of speaking I just want to say That I could never forget the way You told me everything By saying nothing

In a manner of speaking I don't understand How love in silence becomes reprimand

But the way that i feel about you Is beyond words

O give me the words Give me the words That tell me nothing

O give me the words Give me the words That tell me everything

In a manner of speaking Semantics won't do In this life that we live we live we only make do

And the way that we feel Might have to be sacrified

So in a manner of speaking I just want to say That just like you I should find a way To tell you everything By saying nothing.

O give me the words Give me the words That tell me nothing O give me the words Give me the words Give me the words

5.7.07

Eloquente...

Hoje era um bom dia para não escrever... para não ter escrito....

Sobre as coisas puras... nada a dizer, agora que se desvanecem

No decote do oceano, bordei três pedras de sal... efémeras e graciosas pedras como o peito de um amante voluptuoso.
sempre te faltou a eficácia. apesar de forte e autêntico. não sei como explicar-te esta contradição, que afinal parece nada dizer. devo ter falhado os preliminares...
quanto aos preliminares, mais tarde falaremos, porque agora é tarde e o poder das coisas puras desvanece-se...

...


por vezes o texto morre. a palavra morre.

Inacabado

Sentei-me ao lado do teu sorriso, no lugar onde prometeras repetir o amor. Eu, que sempre usara Vinicius na cabeça e nas ondas do cabelo, penteei-me vagarosamente antes de sair da casca do lar, onde miava um gato branco e azul. Procurava-me bela,mirando o corpo ao espelho.
Troquei os primeiros caracóis de cabelo, pelos últimos, calcei ... (cont.)

"na casa de julho e agosto"- viagem extra sensível de Gabriela Llansol


"Sempre me senti paisagem"


"Quanto mais a criança se mexe, impetuosa de movimento interior, sob o choque matinal da exterioridade infinita, mais o seu passo é certeiro e inadequado o seu pensamento. É o momento perigoso de saber. VAMOS CORRER, diz ela. Era tudo o que eu queria ouvir. Eu, paisagem, e ela, criança. e lançamo-nos, lado a lado, numa correria através dos raios luminosos que abrilhantam essa manhã tão dada. Opera-se em nós uma reacçã química, rápida e violenta, acompanhada de grande elevação das imagens. Àquela altura só pode vir do futuro dos tempos. A atmosfera entra-nos pelos poros."


"De livre vontade abandonei a casa com Coração de Urso com meu filho ao colo, indo pelos campos; a casa abria sobre uma enorme cosmogonia que não poderei deixar de relembrar."


"Há infinitos no ínfimo de cada escala. Há um dom poético poderosíssimo à espera em cada centelha de consciência."

4.7.07

21.

hoje, antes de adormeceres, soprei-te nas pestanas.

26. E porque é tem toda a beleza que os dias quentes e frios

Canto de Ossanha . Vinicius de Moraes

O homem que diz "dou" não dá

Porque quem dá mesmo não diz

O homem que diz "vou" não vai

Porque quando foi já não quis

O homem que diz "sou" não é

Porque quem é mesmo é "não sou"

O homem que diz "tô" não tá

Porque ninguém tá quando quer

Coitado do homem que cai

No canto de Ossanha, traidor

Coitado do homem que vai

Atrás de mandinga de amor

Vai, vai, vai, vai, não vou

Vai, vai, vai, vai, não vou

Vai, vai, vai, vai, não vou

Vai, vai, vai, vai, não vou

Que eu não sou ninguém de ir

Em conversa de esquecer

A tristeza de um amor que passou

Não, eu só vou se for pra ver

Uma estrela aparecer

Na manhã de um novo amor

Amigo sinhô, saravá

Xangô me mandou lhe dizer

Se é canto de Ossanha, não vá

Que muito vai se arrepender
Pergunte pro seu Orixá

O amor só é bom se doer

Pergunte pro seu Orixá

O amor só é bom se doer

Pergunte pro seu Orixá

O amor só é bom se doer

Pergunte pro seu Orixá

O amor só é bom se doer

Vai, vai, vai, vai, amar

Vai, vai, vai, sofrerVai, vai, vai, vai, chorar

Vai, vai, vai, dizer

Que eu não sou ninguém de ir

Em conversa de esquecer

A tristeza de um amor que passou

Não, eu só vou se for pra ver

Uma estrela aparecer

Na manhã de um novo amor

a verdade é que está demasiado calor para se ter frio..


Trata-se de um coração que voou...


2.7.07

Multiplicando a espera


Relógio perdido no fundo do pulso, entre artéria e artéria. Ele- o relógio- permance, palpitante... espera-te. O meu relógio espera-te e os dias de espera já passaram todos e voltam a repetir-se.


O meu relógio, afinal é de osso, tem esqueleto. Quando ontem, deitado na cama, embrulhado num lençol amendoado, perguntaste, porque esperava, eu não te disse nada. Não se espera um morto, segredaste, pousando agora o corpo pequeno e pálido na tua alcofa de menino.

Só quando sumiste do campo esverdeado dos meus olhos (num verde agora mesmo inventado), respondi-te à letra, na letra certa que se poderia cantar, se eu tivesse a voz ou a guitarra:

Estou ainda à procura de violetas num prado dourado. Foi o Herberto que as evocou - as VIOLETAS- e eu nunca duvidei que elas- as Violetas- existissem. À espera.



29.6.07

E no FIM disto tudo, um azul de prata.... Biografia de amor


"Song to the Siren" by This Mortal Coil . Did I dream you dreamed about me? Were you here when I was full sail? Now my foolish boat is leaning, broken love lost on your rocks. For you sang, "Touch me not, touch me not, come back tomorrow. "Oh my heart, oh my heart shies from the sorrow. I'm as puzzled as a newborn child. I'm as riddled as the tide. Should I stand amid the breakers? Or shall I lie with death my bride?
Hear me sing: "Swim to me, swim to me, let me enfold you"Here I am. Here I am, waiting to hold you."

Nasci em 1979. Tenho quase 28 anos. Casei-me em 1952, um ano depois de teres partido irremediavelmente para o mundo dos mortos. Não foi por acaso que te escolhi para casar. Escrito na pele, o teu nome era uma companhia... uma campainha também, à qual poderia aceder à velocidade-segundo-desejo do pássaro que me despertaras.

Não te vi passar na rua e no entanto, eras o rapaz mais bonito que eu já vira passar! Nem bebemos vinho ao entardecer, nem enlouquecemos de amor numa cama de hotel.
Para ti eu não era uma rapariga. Nem um rapaz. E nem sequer precisava. Isso era belo.

Um estranho nada-tudo-tudo-nada, muita coisa para caber numa palavra ou num papel.

Por isso casamos. Anos antes de ter nascido, no ano seguinte à tua partida: António Maria Lisboa.

(Casaste muitas vezes depois do nosso enlace. Não importa. A verdade é que sempre foste fácil de amar. E belo. Meu nunca-sempre, António)

Evidentemente, minha cara...

Eu sempre pensei que sabia muitas coisas. E sei.

Mas são poucas.

Betty. Novela fragmentada de uma mulher que anseia tornar-se rosa...


Betty saíu à rua. O vestido amarelo tocava-lha o joelho ferido. Uma marca recente. Como teria acontecido?... Pensei na vida de Betty. Senti que a sua vida me escapava...


Eu, mirone dos seus artifícios, escondido sob a sua saia, alojado nos seus passos, esvoaçando no seu cabelo.


Betty escapara-me. Betty escapara-se . O joelho de Betty guardando-lhe o sangue, a sede. Eu, deitado, chorando lágrimas reais, enroscado nas suas ficticias pernas,deitadas ao meu lado...

REQUISIÇÃO . sob a responsabilidade das mais profundas necessidades de um coração apaixonado

Pede-se aos entendidos em matéria emocional,
ajuda na realização e satisfação das seguintes necessidades:

- Quero o barco, a quilha, o leme. Quero depois a gaivota que cruza o teu pensamento e quero rosas para o teu jardim! Mais de mil.

- Quero oito braços ou um polvo em segunda mão. Quero um sol em estado permanente. Photomatons de cada inspiração. Quero amor solúvel na pele, nas artérias, condensado depois em beleza.

- Quero sete lágrimas para chorar ausências, um papagaio de papel e vento propicio ao vôo.

Desde já agradeço a colaboração.

9.6.07

Carrossel....


E então ela entrava-me na vida, derrubando a porta de entrada, sem pensar nas cicatrizes, no coração todo amassado, numa espécie de caricatura horrenda e inevitável.


Não era o perfume dela que procurava, nem era a rua dela que eu queria cruzar, mas escapava-me primeiro o pé, depois o sol, muito mais tarde uma inútil lágrima (que me lembrava sempre o Inverno), nesses caminhos escuros, onde morri como quem vive.


Já não te espreito na fechadura da memória, já não te levo no carrossel. Deixei-me de apertos. Agora quero aviões e passaportes ilimitados... Parte-te em cacos.


1.6.07

...

Devia ter-lhe dito para quedar-se silenciosa, mas cantou-me.
E depois amei-lhe o delirio sonoro, as suas esfinges musicais...
E procurei a sua casa, a marca dos seus pés no chão, o seu reflexo...

porque era teu o ....

porque era teu o meu coração, perdi metade dos olhos ao mirar-te em demasia, entre longe e perto, nessa distância sem intermédio, nem intermediário, apenas carne-sangue e paixão incendiada. Nua.

12.4.07

Inventár-io de Flores

Era sol e pingava chuva do tecto. O sono evadira-se . Acordara em sobre-SALTO, de coração despido na cadeira metálica e fria. Sentia-me tardia, na manhã que inventaras para mim. O tempo em questão era PERFEITO - ambiente envolto em fragrâncias maritimas, na ausencia de mar ( e aquilo era uma espécie de deslumbramento, uma espécie de luz, sem luz), cores em lilás, lilases pelo chão, doces de provocar salivas insanas.

Mais nada podias fazer, investiras as moedas dos teus bolsos sem fundo, numa casa que eu nunca amara, a não ser na revista folheada, num compartimento de de-lírio. Não me interessava a riqueza caseira, o pão-de-ló na mesa de festas e nunca amara flores de papel, onde se borratam tintas e lágrimas... nunca te disse, mas sempre preferi papoilas selvagens, frágeis, delicadas e cor de sangue. Quebradas do seu solo-sustento, vivem tempo efémero de borboleta e desmaiam na eternidade. Silenciosas.

2.4.07

Apenas AMOR . Vinicius


Vinicius
Um filme de Miguel Faria Jr.

A montagem de um show é o ponto de partida para a reconstituição de uma trajetória sem paralelos no cenário cultural do país. A vida, os amigos, os amores de Vinicius de Moraes, autor de mais de 400 poesias e cerca de 400 letras de música. A essência criativa do artista e filósofo do cotidiano e as transformações do Rio de Janeiro através de raras imagens de arquivo, entrevistas e interpretação de muitos de seus clássicos. Participação especial de Caetano Veloso, Carlos Lyra, Chico Buarque, Ferreira Gullar, Edu Lobo, Francis Hime, Gilberto Gil, Miúcha, Maria Bethânia, Tonia Carrero, Toquinho, Renato Braz, Yamandú Costa, Adriana Calcanhoto, Olívia Byington, Mônica Salmaso, Mariana de Moraes, Sérgio Cassiano, Zeca Pagodinho, MS Bom, Nego Jeil, Lerov, Mart Nália.

A ver:http://www.viniciusdemoraes.com.br/

19.3.07

Depois de Velvet em ilhas do paraíso, a beleza alastra-se nos continentes do coração, surge o espanto

TV
SHOW
a (ir)REALIDADE em directo
a vida em directo. e quando o pano cai,
suspendes o movimento inflamado e inauguras o primeiro gesto.
"eu penso que a memória entra pelos olhos"
Narciso morre,
vítima do seu unipessoaldesejoanseio.


Eu penso que a beleza é uma coisa efémera!


555. Rua do Almada. Performance-Instalação

15.3.07

Conjugar o tempo


Foi sempre.
.é.
.para ti.
.nunca-sempre.
.que escrevi.
.escreverei.

Falta-me o exercicio da tua escrita


Era manhã e eu rascunhava no teu peito um insólito coração. Surpreendido, olhavas-me entre as pálpebras e repetias baixinho, sem deslumbramento, os meus gestos e artificios.
Eu buscava-te no lado oriental do meu desejo, mas dizias-me alto e a vinte vozes, que o desejo é o ego, o ego não se faz eco, o ideal é metáfora e os meus passos são trôpegos e frágeis para escalar uma montanha a frio.
Pensei-te pretencioso, mas como uma boa marioneta de enredar segredos, calei a voz, num poço fundo e retirei-me de mansinho para o meu silêncio, de acidentados vales, onde te sentavas, atento ao que já passara e ainda ardia...

14.3.07

Milhares de vozes gritam o teu nome silenciosamente


No lado esquerdo da tua mão, acumulavas recados que nunca lias.
Dizias que a surpersa-segredo, guardada entre dedos, mantinha-te aceso no susto de estar vivo.

Nunca me surpreendera a tua ausencia fragmentada em dilúvio, nem as tristes cores com que cosias os teus pés à terra, mas a interna-eterna maré circular do meu silêncio, sonhava-te carne viva-sangue em tenebroso rastilho, nas artérias desarticuladas da bailarina que não cheguei a ser.

Oculto, na transcendente manhã, fica suspenso um circular segredo:
Ainda gostava que perdesses os medos e te desses ao vento clandestino, onde o corpo-fragata, inventa sucessivos regaços aquosos, num simulacro de morte renascida e acolhedora.

1.3.07

Artur Cruzeiro Seixas - Pinta no céu das árvores e sonha para sempre dias nocturnos


As minhas coisas “acontecem”, porque são uma necessidade profunda. Um amigo meu, pintor, desejava o dia em que já não fosse capaz de pintar. Eu nunca seria capaz de o deixar de fazer. Em qualquer circunstância da vida vejo-me a garatujar num papel ou numa parede. Se considerar a pintura como uma “obra de arte” com tela, cavalete e materiais nobres, sinto-me assustado, mas esses problemas não se põem comigo, porque não é à obra de arte que aponto, e porque muito raramente utilizei materiais tidos como nobres. Desenhar e pintar são necessidades independentes de mim, que tem a sua parte de necessidade fisiológica.
Pergunta-me como comecei a fazer estes cadernos. Na verdade não fiz na adolescência o Diário que quasi todos os adolescentes fazem. Foi já muito tarde que comecei a alinhar breves notas daquilo que me ocorre no dia a dia, durante a semana ou durante o mês; as amizades, as inimizades, as descobertas (não descobrimos nada, está já tudo descoberto!), foi tudo isso o que fui apontando nos intervalos que tinha de outros afazeres. Nessas folhas ia metendo um bilhete de eléctrico, ou qualquer outra coisa que me sugerisse um momento vivido, fotografias de pessoas, e pequenas pinturas ou desenhos, etc, etc. São cadernos de uma grande fragilidade, constituídos por folhas de papel metidas em argolas, de maneira que com o tempo e com o folhear os buracos se rompem, e tudo aquilo sai do sítio. Foi um disparate usar tal excesso de fragilidade, mas já são trinta e tal cadernos, e seria impossível recomeçar. Alguém algum dia olhará com alguma benevolência este documento? Se calhar vão deitar fora tudo aquilo, pois é esse o destino de tantas coisas em Portugal. Mas esses cadernos aconteceram e continuam a acontecer, pois de certa forma disponho agora de mais tempo, passado o tempo em que fui tocado pela asa da pintura profissional. Isso já lá vai há muitos anos felizmente: Trata-se agora de deixar o meu depoiamento sobre um papel qualquer, com o lápis ou com a esferográfica que tenho à mão. Julgo que aqueles pequenos desenhos casuais, podiam afinal ser obra de arte, se transplantados para a tela e para o cavalete, digo-o sem falsa modéstia.
Na verdade nem quando pintei sobre tela usei o cavalete. De resto durante toda a minha longa vida, não devo ter pintado mais do que umas vinte telas. Elas correspondiam à tal necessidade profunda, mas também foram a maneira de sobreviver. Nunca acreditei muito naquilo que fiz, e o dinheiro que ganhava não dava para fotografar as obras. Assim, desorganizado como sou não sei o destino da maior parte do que desenhei e pintei. Justamente, há dias, numa entrevista, contava a estória de dois quadros que uma galeria tinha “descoberto”. Pediram-me para passar por lá para confirmar se os quadros eram de facto de minha autoria. Na minha idade avoluma-se a ideia de que o que fiz talvez não tenha qualquer mérito. Fui a essa galeria com um bocado de medo, e acabei por ficar tão satisfeito quanto possível. No entanto felicitei-me por não estar a fazer hoje a pintura profissional que vemos em galerias e em exposições.
Voltando aos “Diários” (prefiro designá-los como “Desaforismos”), eu não pensava que fosse possível serem editados, mas gostava evidentemente que alguém os folheasse. Foi um amigo espanhol quem mais se interessou por eles. Vive numa pequena e belíssima cidade, e o seu ganha pão é um quiosque onde vende lotaria. Por sua vez ele tem um amigo que tem uma modesta tipografia, e assim editaram 3 livros, maquetes originais, que o Mário Henrique Leiria me tinha oferecido, e que, sendo obras excepcionais, não tinham aqui merecido a atenção devida. Fiquei-lhes sempre muito grato, e a amizade estreitou-se. Visitamo-nos, e trocamos lembranças. De vez em quando presenteiam-me com restos de folhas que lá na tipografia reunem em caderno. A outras pessoas servirão para as contas do dia a dia, mas foi a partir daí, em folhas de papel de música, que passei a desenhar e a pintar, e a reunir Aforismos de diversos autores e os tais meus Desaforismos. Este caderno, mais uma vez casual, foi visto pelos irmãos António e João Prates da Galeria S.Bento, e resolveram-no incluir entre um projecto de edições numeradas e assinadas pelos autores, e resultaram bonitas edições. Esse livro intitula-se “Local onde o Mar Naufragou”. Outro livro recentemente editado reúne principalmente poesia e desenhos datados dos anos 40/60. Trata-se de uma nova editora, mas o livro é extremamente cuidado, e pode ser classificado de luxuoso. O livro intitula-se “Viagem sem regresso”, e a editora é “Tiragem Limitada”.
O meu método de desenho é não ter método. Tirei apenas o quinto ano de desenho da Escola António Arroio, mas com os professores nunca aprendi nada. Nunca gostei de aprender, a não ser comigo mesmo. A técnica é coisa muito de se lhe tirar o chapéu, mas não é o principal. Além disso, por certo, para ela não estou vocacionado. A alma é a minha técnica, e se há algum valor naquilo que faço, isso advém de um excesso de alma.
Repito que sempre utilizei papéis de acaso, por vezes quadriculados ou de 35 linhas. Parecia-me que ninguém quereria comprar tais coisas, mas o passar dos anos vieram a me revelar o contrário. Se há realmente alguma glória naquilo que fiz (glória é uma palavra evidentemente excessiva), ela advém desta experiência, de conseguir algum consenso, usando tais suportes.
Quanto às figurações que se movimentam naquilo que desenho e pinto elas vêm directamente do subconsciente, mas também dos encontros que vamos fazendo pelas ruas, dos livros que lemos, das guerras e das fomes, e de uma ou outra coisa boa que ainda nos toca. Muitos dos desenhos são feitos quando estou ao telefone. Com a atenção dividida, aquilo que aparece é mais livre; a mão vai e vem por ali fora, como traçando um gráfico. Conheço pintores, que muito prezo, que são capazes de dizer como vai ser o próximo quadro. Eles já sabem tudo, já o estão a ver. Eu, estou cego diante do papel ou da tela. Se “visse” o quadro antes de o fazer, por certo já não o faria, pois me pareceria que já tinha passado o seu tempo. Mas o meu método não será o melhor, pois que não dá para ser um grande nome da pintura. O que vos deixo são apenas depoimentos ou testemunhos.

Funesto som, trepa a varanda em luz escarlate

Recuperar uma casa, um lugar. Um extremo doce, nas latitudes da memória.
Avançar austera, qual cavaleiro andante, nas regiões mais imprecisas da imaginação.
Ser finalmente matéria-poema, continuar...