13.8.11

P



Jean Michel-Basquiat

Estávamos a um passo de ver o primeiro sol.
Era assim que suspiravas, enquanto o sol,
atraiçoando-te,
se colocava completo esticado no céu,
demasiado alto para se deixar atingir  pelo teu corpo frágil.

Nunca me disseste como te doíam os sonhos,
por onde te cresciam as rugas,
por onde semeavas as interrogações.
por iso, à minha maneira,
imagino-os.
Se escrevo é porque penso que quero que escrevas:
há razões mais fortes do que os mitos,
e no fim, só ficam sepultadas as caveiras.

Creio por isso, que dentro de cada um existe a possibilidade:
salpicar o cosmos com as anunciadas 21 gramas que um corpo perde aquando o seu último respiro.
Gosto de anoitecer a magicar maneiras de te colocar no espaço sideral,
mas terás feito isso melhor do que eu,
do que ela,
do que nós.

Eu ainda tenho um corpo, um sopro.
Ouço Zeca Afonso, penso beleza - interior, interior, interior- como eco vibrante:
tudo fica,
tudo vai,
e no remate final pretendo aniquilar o pretérito perfeiro,
esse modo agreste  de conjugar a vida.

Deixa-te ficar sentado na cadeira se a tua vontade assim quiser,
ou segue pelo calor dessa viagem,
onde tudo é fátuo e eterno.

Eu vinha para dizer-te que a minha cabeça pairou,
sobre os fios que te enlearam o sangue,
as veias,
os rins,
as tuas mãos tão quietas.
Quero repetir o teu nome no silêncio
e servir-te anjos pela janela da tua ausência.
(mas)
Sou frágil e não tenho o cetim que envolveu o teu corpo defunto,
mas cabe-me abraçar a manhã,
cabe-me abraçar-te amanhã.

Se eu falhar na tarefa de existir,
ou se também o meu corpo atraiçoar o meu tempo de inspirar azul,
talvez te encontre e possamos dizer o não dito,
coisas como gostar de ti fez-me ser difícil,
confuso retalho de pensamento
e por isso agradeço-te.

Vou instruir os meus dedos, cada vez mais alucinadamente.
Não imaginas -ou talvez imagines- como me enche de entusiasmo crer no indizível ou
nessa sede de revelar o espectro da paisagem repetida
ou na  maneira idêntica-diferente como a noite se derruba no colchão e adormece.

Tenho ideilizado uma peça de teatro,
vejo o palco,
a caixa negra
e  mais uma vez o azul de Klein,
acentuando-se nos cantos,
essas fronteiras que delimitam os espaços
- o actor e o observador-
metáfora certa do tempo,
do corpo,
da passagem.

Talvez realize esse espectáculo.
Talves realize esse espectáculo de forma sublime,
e a morte que "sai à rua",
possa entrar finalmente na vida,
sem triunfar.