20.11.12

Folhas vermelhas




Talvez -quem sabe!- sairemos nas notícias do dia seguinte
ou disparataremos o corpo em tentativas inúteis de fazer coisas muito belas (as inesquecíveis)!

Podemos também roubar janelas para que entre mais luz nesse cubículo onde refazes palavras-cruzadas
e temos medo que fique demasiado frio ou demasiado calor
                (as temperaturas extremas do Herberto ou a nossa incapacidade para realizá-las enquanto plano)

Havemos de voltar a esta paisagem (nem que passem cem anos ou mais!),
eu hei-de repetir-te dos amores que me nutrem:

repito os pormenores até a um cansaço que no seu derradeiro fim suscitarão apenas indiferença,
depois nem fome nem nada,
a temperatura já nem existirá!
(será que a não matéria tem temperatura?)
rasgarei o teu nome e acharás ofensivo!!!diabólico!!!!, vais arder
(eu quero arder contigo)
Explicarei calmamente o que pretendo fazer:
conjugar-te de novos modos que me pareçam surpreendentes!
(e eu terei um palco de luz dentro do peito!)

É inglório o esforço,
não te convences que a beleza é narcísica, precisa de se recriar constantemente.
Nada.
Nada.
Nada.
Derrubo as damas, os cavalos, as torres
(soubera eu jogar xadrez, mudaria a decoração da tua casa)

Quando regressarmos vais pedir-me o resumo destes dias
eu vou querer falar-te de umas folhas muito vermelhas que se distinguiam no verde da paisagem,
mas -óbvio- não vou ter coragem,
direi que está tudo bem,
que amanhã faço uma formação para fazer contas com mais precisão.

Tu vais sorrir paternalmente,
eu vou fazer rabiscos nos olhos que te  parecerão sorrisos
(muito dentro dos olhos, porque quem vê olhos não vê corações),
tudo será real outra vez,
gato ou gatos
real ou reais,
todos,
outra vez.

10.11.12

SENHOR ABÍLIO



Tornara-se hábito aquele de circular noite e dia pelas ruas da cidade. Que via os astros por dentro, dizia. Que falava com anjos, dizia. Que bebia leite e devorava enlatados, dizia.
Era forte e tinha uma barriga esplendorosa como um sol. Era belo e terno, por isso quando se passeava – nesse eterno passeio- apetecia falar –lhe de perto, vê-lo de perto. Chamava-se Abílio – Senhor Abílio, senhor Abílio! – e era um gosto vê-lo olhar e dirigir-se devagar como quem tem o compasso do mundo nas pernas e nos músculos que lhe fazem o sorriso.
Não lia nada que o atormentasse, recusava-se a compactuar com o desespero desencantado dos homens e das mulheres, no entanto, planeava bombardear os esgotos do mundo e conseguir assim a primordial, a única, a irreverente e mais eficaz de todas as guerras: Se rebentarmos com os lugares que guardam toda a merda humana –congeminava-  damos cabo disto tudo e voltamos a ser coisa nenhuma, partícula de ar (não será aquilo que afinal somos?).
Dito assim pode parecer grosseiro. Não é. O senhor Abílio tem perfil de Bordalo Pinheiro, é rústico, mas autêntico, honesto, transparente. Não tem pudor, por isso o seu léxico tem a cadência do seu pensar, se porventura se chegar a concretizar pensamento desses usuais com princípio, meio e fim.
Não deve nada, paga as contas certas até aos cêntimos, tem hábitos precisos, embora aparentemente disfuncionais. Também não saberei o que subentender por “funcionalidade” e angustia-me, como angustia ao senhor Abílio, a mecanização do existir. Por isso, ligo o aparelhómetro do disfuncionamento e bebo vinho com ele. Embora ele beba água. Ou beba café. Ou beba sumo. O senhor Abílio tem um corpo grande e límpido, como as manhãs cheias de Verão e a ria cabe-lhe bem nas utopias. Essa ria exacta que combina exactamente com o dia de sol descrito e enche tudo de beleza e lonjura.
O senhor Abílio exerce-se por longos ciclos, que cumpre ou sonha cumprir, porque isso também não interessa. Somos quase sempre a verdade do que nos apetece ser. A cada 20 anos renova a sua agenda, os seus gostos, os seus hábitos, menos o de ir caminhando. Esse permanece, dá-lhe vida, como me dá vida a mim vê-lo passear.
Na meninice andou a sonhar o teatro, ser Raul Solnado e provocar o riso. Encher-se de ironias e palavras bíblicas, parecia-lhe um projecto apoteótico! Um espectáculo grande como parece ser este, o da sua vida.
 Quando ele se fundir na paisagem, navegar para mais perto dos seus anjos, tenho a certeza de que vamos pernoitar durante muito tempo naquela melancolia persistente que nos faz vislumbrar fantasmas. Porque ele habita paisagens, ruas que se cruzam –não mais do que dez ou vinte- e essas ruas têm o nome dele e. E nós temo-lo a ele, às ruas e ao seu nome dentro de nós, numa geografia que desenha a nossa cidade.