31.3.09

Escreve na parede do meu peito . (ESTADO: líquido)

"As coisas, por exemplo, começavam todas pelo princípio e acabavam no final. Por isso, nesse tempo, para ele tinha sido uma grande surpresa, e nunca mais as esquecera, umas declarações do cineasta Godard onde dizia que gostava de entrar nas salas de cinema sem saber quando é que o filme tinha começado, entrar ao acaso em qualquer sequência, e ir-se embora antes do filme ter terminado. Seguramente, Godard não acreditava nos argumentos. E possivelmente tinha razão. Não era nada claro que qualquer fragmento da nossa vida fosse precisamente uma história fechada, com um argumento, com princípio e com fim."

Enrique Vila-Matas, Doutor Pasavento (Teorema, 2007)

29.3.09

BANG BANG

Bom-dia, meu amor.

Vim dizer-te qua a rua ardeu
e o avô fez anos de morto.
Desapareceram-lhe os poros,
e já mal se lhe guarda o esqueleto.
A terra comeu-o,
mas um lírico diz-me que o corpo morto
germinou em jardim.

De que me valem essas flores?

Na aldeia ninguém se fala,
o corpo cansa-se de espreguiçar murmúrios,
e depois com as ruas queimadas,
os pés ardem nos caminhos.

Na aldeia não se fala de pés,
mas era através dos pés que se falava.
Havia algo de encantatório nessa conversa que caminhava.
Que se caminhava.
Que se encaminhava.
Agora,
aninhados os pés em silêncio,
tornou-se difícil explorar outras geografias falantes do corpo,
do copo.

Enche-me o copo de sol.

Foi por isso que esta carta
foi nascendo até se gritar.
Eu estava cansada
e parti a guitarra
contra o espelho.
A melodia reflectida,
a melodia despedaçada,
não imaginas como escureci.

Desde que a aldeia está calada
já não se sonha
a não ser que se boceje.
mas ninguém entende de bocas,
ninguém beija essa estrutura de carne feita para amar.

Meu amor,
com a guitarra partida
e os pés calados,
custa-me a chuva
que se cai em cinzento.
A água que me caíu dentro,
era devassa,
arrastou um livro
que tinha ilustrações de uma ilha
onde a boca falava,
onde a boca reinava.


Nada disto esteve para se dizer,
meu amor,
os dias são apenas dias,
quando o pensamento se cansa de se pensar.

Hoje andei a tarde inteira a correr atrás de um poema,
comprei-o por um valor que ele não tinha.
Era um poema de um homem que trazia outro homem dentro.
Quando segurei o poema na mão,
a mão escureceu.
Lavei-a com tinta,
voltou à cor que antes tinha.
Voltarei a ter a cor que tinha?
Esse poema caminhava arrastado
num saco verde
e o pai era um homem magro
que não era bom contador de histórias,
mas de notas sabia,
escrevia-as por todo o lado.
O homem e o seu duplo,
transmutados em estátua,
tinham por companhia uma caravela azul e branca.
Era um bocado feia,
ningúem a queria,
por isso comprei-a
e nunca mais a ofereci.
Somos muitos,
e quando te escrevo
confunde-me a estátua,
arrepiam-se as palavras caladas dos pés,
o esqueleto range no jardim.
a caravela pinta o seu rosto de convés
e transforma-se diva
por cem dias.
É desta aldeia em desatino,
em que de um louco se faz um menino,
que te escrevo.
Estou bem,
os dedos permanecem altos
e apontam nortes como bússolas.
Sossego agora.
Guarda uma fatia do teu silêncio
para te engolir de perto.
Volto no Verão.

Porque é um acto de amor. nota confessionária onde o poema reina devagar





Em casa de livros, quem tem amor singra, se não pela venda, pela criação de um país de infinitudes. Esta casa tinha livros que ocupavam tudo. As paredes eram um livro imenso. Passeavam-se por lá fantasmas idos de escritores nos seus escritos, nas manchas negras que habitam o univeros branco... essa casa metafórica... essa casa em metamorfose que é um livro a acontecer-se.

ESTA CASA É MUITO BELA.

Hoje visitei-a nas imagens.
Eu queria desta casa uma porta aberta, uma sesta no sótão do seu abrigo.
Que assim seja, que assim se leia, pelas ordens que regulam o despojamento.

(Nick Cave em banda sonora aleatória canta no momento da escrita).



23.3.09

LUME


Deixo que o LUME segure a minha mão.

O interior da mão -
imagino,
imaginamos-
é de nuvem que não te chove:
segura-te.

Escrevi-te um livro inteiro e está todo em branco.

Leio-to (lendo-te) para que entendas como é barulhento o silêncio dessas páginas.

Assim,
suspenso no tecto do coração
fotografas a rua,
eu não estou lá,
mas ouço ao longe o soletrar
de uns passos.
Reparo:
a vizinha é alta e esguia,
e ateia o fogo para limpar os móveis do jardim.
A noite, essa, pode esfriar no prato,
porque te distrais a contar
o tamanho de um ovo
e eu penso que é belo ver
como trabalham as tuas mãos.
Dizes que o labor
é precioso,
isso espanta-me,
desperta-me o improviso:
canto alto na rua
para que notes que me comovo
quando te expandes em minunciosas tarefas.

O lume está agora dentro
de casa,
a montanha diáfana enche-se de pássaros
que nomeias pela ordem das visões.
Abres o sol em gomos,
comemos o sol
e é bom.
Esse incêndio de luz
incandesce no sono.

Eu nunca soube se uma aldeia se compra,
ou se se pede de empréstimo
às criaturas e aos montes.
Mas sei que buscaria terra
e plantaria poemas nos vasos,
para que chegasses mais cedo
aos braços que já te moldaram mil vezes.

É noite agora,
as mãos pintam-te no rosto uma palavra
cheia como uma lua.
De manhã,
seremos três,
tu,
eu
e a voz citando al berto:
"quando acordares, e abrires a janela"...

9

para que os dias possam cantar,

espremias estrelas no asfalto.

21.3.09

10. POEMA (realmente) EM DOIS TEMPOS. UM ERA MANHÃ O OUTRO ERA DE NOITE (mas este poema é longo, procura-se terceiro)

Nesse dia,


enquanto a noite era o avesso do dia distante,


eu tinha


-finalmente-


percebido:






Uma história é o que nos pousa nos ombros.


é o que nos fica,


queda-se, hesitante, depois segura.





Mas como as histórias nem sempre têm voz,dedica-se a alma


,que é uma porção do ser, dedicada a causas mínimas de elevadas dimensões)


a descoser as linhas que atravessam



as redes.
São de nevoeiro e ardem.





Eu comecei este poema há mil anos,


eras tu ainda pequeno.


Visto à luz de palma da mão,


assentando a atenção nas tentativas de vislumbre,


confundia-te com uma linha


- dessas que traçam itinerários de riso e de perda.





Cosia-te então,


primeiro à rua,


para que os pés soubessem o caminho,


depois ao céu,


para que os olhos se abrissem em vôo.


(não acredito em ASAS. Faltam-lhes vocação para se humanizarem.


não consigo fazer nada com elas para além da prática de simulacros)

18.3.09

11.

No dia em que te fotografei pela

última vez,

escondi-te o rosto

atrás de mim.



Agora ando com a tua sombra,

que é uma cara sem pernas,

preciso carregá-la nos ombros,

de um lado para o outro lado da rua,

e ás vezes são pesadas as linhas do

teu rosto,

nas linhas da rua

17.3.09

PEDRAS para sentar OU PEDRAS por assentar

Este é o banco
onde podes sentar as
pedras.

Mais tarde, quando voltares a
passar pelo banco,
onde descansam as pedras
adormecidas de sol,
atira-as para longe,
tenta acertar no alvo!
Há quem pense que é uma mulher bonita,
mas não acredites.

Ela não acredita.

Podes escrever-lhe um poema sobre pedras
ou sobre lagos
ou sobre bacias que guardam lagos com pedras.
Ela preferirá sempre o poema que não escreveste.

Podes passar-lhe a mão nas pernas e nos pêlos,
podes ver como arranham,
podes ver como doem.
Não são suaves como sonhaste que seriam os pêlos da
mulher amada,
mas são pêlos e são os dela.

Esta mulher pensa que a estética
se resume quase sempre a um corpo que baile bem.
prefere bronzear livros ao sol,
que é como quem diz deixar os braços fora
da janela do corpo,
e deixá-los avançar,
seguros,
satisfeitos,
num baile sem asas.

Das pedras, a mulher,
sabe de cor (e pela cor) o sabor
...e nunca foi o de sopa.
Fossem deliciosas as pedras
e bordaria com elas um coral.

As pedras são amargas.
As pedras são pesadas,
principalmente se carregadas nos bolsos
de um casaco que não se despe.
(e esse, tenho ouvido,
resguarda-se debaixo da pele,
longe dos toques
e das mãos)

16.3.09

VINIL VIL, VIL VINIL

a página acendeu-se.
este seria o poema certo para te ler,
mas...

não estou aqui para ler poesia,

fechou-se o cardápio,
volta quando a noite cair
do cimo de si onde se sustenta,
espalhada no chão,
confusa de estrelas e astros
assustados pela enorme queda
(chora mais quem cai primeiro,
é a regra do cosmos,
para que o último escute esse eco.
... não é uma questão de ego...
é uma questão de eco-eco-eco-ec-e-...)

Se preferes a lua cheia porque não
compras uma somente para ti?
Tu e a tua-lua-tua-lua.

Não me olhes com cara de mau,
sabes que não é assim que te vejo,
o reflexo é sempre o do outro
e esse já sabes, comove-me
provoca-me inquietude,
deixa-me os dedos calados-colados.
Deixa-me os dedos parados.

Enquanto o teu nome couber inteiro
no vinil antigo
e os Velvet disserem de ti
o que tu apagas,
este dia continuará a ter qualquer coisa de teu
-não sei se a luz, se o cheiro, se a impressão de te ver entre outros-
ou tu, aqui,
neste lugar arredondado
onde guardo mundo
em quadros sem telas.

O vinil é um tipo de plástico muito delicado e qualquer arranhão pode comprometer a qualidade sonora. Os discos precisam constantemente ser limpos e estar sempre livres de poeira, ser guardados sempre na posição vertical e dentro de sua capa e envelope de proteção. A poeira é o pior inimigo do vinil pois funciona como um abrasivo, danificando tanto o disco como a agulha.

(in Wikipédia)

15.3.09

EQUINÓCIO com demasiados parêntesis


De cinzento a cinzento penso a parede.

(a parede é uma matéria ingrata
quando se fala baixinho,
primeiro, gastam-se as palavras nos tijolos,
depois gasta-se a cor com o tempo que as palavras levam
a desenvencilhar tijolos e letras,
por fim, gastas pelo tempo,
as palavras desistem,
comem definitivamente a cor
e o silêncio tem o seu supremo reinado).

O teu silêncio quebra o corpo da flor
(passara horas a desenhá-la no jardim)
O teu silêncio mutila o lado risonho onde navega o segredo filosofal

O poema visto do avesso transformou-se noutra estrutura...

Do fim para o pricípio as letras nunca mais se encontraram,
por isso este poema pode ser mau,
por isso este poema deve ser mau:
é como um corpo que não se entende,
pernas para o ar,
coração em vez de rins,
água inquinada como conversa que se matuta e não se diz.

Nem riso, nem rizomas,
fazem parte deste prato que serves com lágrimas sem sal.
(trago apressada o saleiro,
encho-te os olhos de sal,
não para salgar lágrimas
-eu sei que é uma perda de tempo salgar lágrimas-
mas para trazer viva a memória do primeiro
mar,
do primeiro sorriso
e do teu corpo horizontal a ocupar toda a visão da planície)

O esforço deve ser nenhum
quando a alma é empática,
(sussurra um sábio velho, um sábio chato, um chato velho!)
Mas na verdade,
eu penso que essa filosofia não me cabe dentro da cabeça,
escrevo-a de cor, mas sem salteados.
Não cabe o sapato nesse pé
tropeça, vacila,
é um sapato vazio caído na rua,
(fico triste quando vejo sapatos sem dono,
perdidos na rua.
Fazem lembrar gente morta).

Por fim,
dizes-me para colocar o saleiro num lugar onde eu não o veja,
um mar ido não deve ser evocado com estratégias de diversão.
Agora tudo sério, dizes,
Agora é a sério, dizes,
esfregando as mãos, confiante.

A tinta certa pinta a parede cor-de-laranja que me dedicaras,
já não tem laranjas, nem flores brancas em período de gestação,
é uma parede cinzenta
onde peregrina a melancolia que sabe de cor
o sabor do sal.

(Se este poema tivesse uma etiqueta seria: "EQUINÓCIO",
mas não sei porquê... sabe-me bem esse nome...
Esse nome cabe no sabor deste poema)

NOCTURNO. Nuno Júdice

Nocturno . Nuno Júdice

Sair de casa, digo, ir ao teu
encontro e dizer-te aquilo que
noutro tempo nunca ousei dizer-te: "O amor..."
Ou então, saberás tu que o amor nem sempre
pode ser dito como se diz que vai chover,
ou que o cansaço da vida é um sentimento incómodo,
e até frequente, nos dias que correm?
Mas os teus olhos talvez
me dêem um sinal: como se para além deles
se abrisse um descampado, o deserto inóspito
das sensações. "Voltarei a ver-te?". O essencial
nunca está nas respostas,
que dizem a verdade ou o seu contrário. São os teus olhos que me interessam;
um murmúrio perto de mim, sobre as conversas e a músca.
Porque aquilo que , de súbito, descubro
em ti é a voz com que me falas, e que traz
consigo o eco de outro tempo. Não te
respondo, então- onde iria encontrar,
também eu, essa voz antiga de que
me esqueci nalgum canto do passado? Com
que falsa entoação, jogo de actor esquecido
das deixas, máscara de simuladas
sinceridades, te diria: "Amo-te"
(Mas o amor nada tem a ver com as palavras;
nem a breve pressão dos dedos no corpo
pode traduzir o que perdi, algures,
ao ver que te afastavas por entre
as árvores e os anos.)

11.3.09

Dizias.

talvez a lua se ausente dos reflexos do mar, dizias.
não procures a lua onde ela não está, dizias.
a lua morreu, dizias.

eu parava, escutando-te
uma atenção latente debaixo das pálpebras, porque de ti interessavam-me,
primeiro: os olhos (reliquiário de histórias)
segundo (segundo a segundo, minutos muitos): a pele (película transparente de anfíbio)
terceiro: as algemas (várias, rodeando cada um dos teus braços, enroscados no centro do coração).

Depois dizia-te: a paisagem que inventei tem a banda sonora do Paris Texas e os anjos saltaram de filme em filme e pararam no parapeito deste deserto.
Consegues vê-los?
Pretos e brancos, dançam num ritual simples chamado abraço.

A lua morreu, dizias.
A noite não está onde julga estar, dizias.
Não se chega a um lugar onde nunca se viveu, dizias.

Já era tarde para avisos...

Eu rascunhara luas no céu e os anjos vestiam agora jaquetas verde-alface,
calçavam sapatos prateados
a a cor tomava conta de um grupo de rãs que em vez de coaxar, cantavam o alfabeto e contavam sementes num frasco de vidro muito fundo, muito vivo.

A lua morreu, dizias.
Guarda o envelope e não envies a carta, dizias.
Não voltes a ligar, dizias.
Nunca entendi a tua voz, dizias.

Eu fingindo não ouvir,
corria o deserto, que agora era um rio onde podiamos mergulhar,
mas sem truques de sereia era difícil poder levar-te.
Preferias terra quente,
desertos de areia,
anjos pretos e brancos,
rãs a coaxar.

Tudo no lugar
(Menos a lua que não é tua, não é minha... é de quem a apanhar)

2.3.09

Agora vai ser simples. Antonio Franco Alexandre. FOGE BANDIDO. Manel Cruz

Agora vai ser assim: nunca mais te verei.
Este facto simples, que todos me dizem ser simples, trivial,e humano,
como um destino orgânico e sensato,
Fica em mim como um muro imóvel,
um aspecto esquecidoe altivo de todas as coisas, de todas as palavras.
Sempre nos separaram as circunstâncias, e a essência mesma dos dias, quando entre a relva e a copa das árvores
me esquecia de pensar, e o ar passava
por mim antes de erguer os caules verdes e alimentar
a vida sem imagens da paisagem.
Marcávamos férias em meses diferentes.
O fim do ano, a páscoa, calhavam sempre
em outros dias. Tesouras surdas
rompiam o cordão dos telefones, e por engano
urgentes cartas atravessavam o planeta, apareciam
anos depois no arquivo municipal. E mais: a minha idade,a tua, não poderiam nunca encontrar se no mundo.
antónio franco alexandre
poemas assírio & alvim

there is a tree...

se eu fosse esse peixe verde, por onde as ondas espreitam os jardins e pudesse agarrar o teu corpo, de lés a lés azul, sem te ferir.

imersa nesta gramática de cores, os passos são lentos mas parecem velozes.
não ligues.
não interpretes.
eu cuido das tuas mãos sem rasgar com elas os meus diários visuais.