14.4.09

Um poema em tamanho de noite . Em púrpura o teu corpo arde.


quando escrevias convocavas a lua.

para que nada faltasse
afiavas a lâmina,
marcando a noite funda
na tua boca.
escrevias demasiado
e um poema falava-se,
autónomo de ti.
Ontem, li-te num poema.
Chamavas-te António:
..."sou a vítima, o resultado
de uma maneira de inclinar os ombros,
quero dizer a sombra do teu silêncio"...
Era desse trapézio sem rede
que atiravas precipicios
em formas escritas.
Parceiros tinhas mais de mil,
cada um amante,
um amor ,
um avesso.
Era noite
e era um enigma.
Ela surgia-te no enredo,
o corpo era real e intocável.
por isso,
seguraste-lhe a insegura anca
tornaste-lhe frágil a tez
para que a pudesses ler nos contrários.

Rasgaste a saia da mulher que te passava na rua,
quero-te nua, quero -te inteira,
quero-te minha no espaço de um poema.
...
a mulher fugiu-te,
porque te preferia sólido,
quente,
não vestido nesse corpo frio
onde escrevias poesia,
como quem corta a pele,
na ilusão de revelar o vazio.

depois,
sem mulher
e com uma saia de ausência
pousada na cadeira vermelha,
escreveste outro poema.
a sala cheirava a incenso,
era insuportável e encantatório.
o poema atravessara-se na mesa,
era urgente escrevê-lo.

Agarravas, frenético, a matéria dispersa
e num acto cirúrgico
dissecavas metáforas.
é engraçado pensar que antes,
muito antes
de veres a mulher nua,
já lhe conhecias
a curva do desespero,
a cintura indefinida,
as unhas incertas,
sem verniz
e sem cuidado.

Escreveste o poema inteiro,
durou-te uma garrafa
e alguma tinta.
Ao nascer do dia
enviaste uma carta para mil moradas.
Eram mil mulheres
no teu poema.
Liam-no.
Comoviam-se.
Incomodavam-se.
Eram mil mulheres
e o poema.
vestiram-no como quem veste uma saia,
taparam a nudez
para sair no dia.
E o poema estava em cada uma,
e agora estavam inteiramente nuas,
mas ninguém reparava na subtil diferença
de ver um corpo aberto no espaço de um poema.

E dentro das mil mulheres,
o seu silêncio revelado pensava-se
em aflição,
tapando com a mão
o coração escancarado nos poros
do teu poema.

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