29.3.09

BANG BANG

Bom-dia, meu amor.

Vim dizer-te qua a rua ardeu
e o avô fez anos de morto.
Desapareceram-lhe os poros,
e já mal se lhe guarda o esqueleto.
A terra comeu-o,
mas um lírico diz-me que o corpo morto
germinou em jardim.

De que me valem essas flores?

Na aldeia ninguém se fala,
o corpo cansa-se de espreguiçar murmúrios,
e depois com as ruas queimadas,
os pés ardem nos caminhos.

Na aldeia não se fala de pés,
mas era através dos pés que se falava.
Havia algo de encantatório nessa conversa que caminhava.
Que se caminhava.
Que se encaminhava.
Agora,
aninhados os pés em silêncio,
tornou-se difícil explorar outras geografias falantes do corpo,
do copo.

Enche-me o copo de sol.

Foi por isso que esta carta
foi nascendo até se gritar.
Eu estava cansada
e parti a guitarra
contra o espelho.
A melodia reflectida,
a melodia despedaçada,
não imaginas como escureci.

Desde que a aldeia está calada
já não se sonha
a não ser que se boceje.
mas ninguém entende de bocas,
ninguém beija essa estrutura de carne feita para amar.

Meu amor,
com a guitarra partida
e os pés calados,
custa-me a chuva
que se cai em cinzento.
A água que me caíu dentro,
era devassa,
arrastou um livro
que tinha ilustrações de uma ilha
onde a boca falava,
onde a boca reinava.


Nada disto esteve para se dizer,
meu amor,
os dias são apenas dias,
quando o pensamento se cansa de se pensar.

Hoje andei a tarde inteira a correr atrás de um poema,
comprei-o por um valor que ele não tinha.
Era um poema de um homem que trazia outro homem dentro.
Quando segurei o poema na mão,
a mão escureceu.
Lavei-a com tinta,
voltou à cor que antes tinha.
Voltarei a ter a cor que tinha?
Esse poema caminhava arrastado
num saco verde
e o pai era um homem magro
que não era bom contador de histórias,
mas de notas sabia,
escrevia-as por todo o lado.
O homem e o seu duplo,
transmutados em estátua,
tinham por companhia uma caravela azul e branca.
Era um bocado feia,
ningúem a queria,
por isso comprei-a
e nunca mais a ofereci.
Somos muitos,
e quando te escrevo
confunde-me a estátua,
arrepiam-se as palavras caladas dos pés,
o esqueleto range no jardim.
a caravela pinta o seu rosto de convés
e transforma-se diva
por cem dias.
É desta aldeia em desatino,
em que de um louco se faz um menino,
que te escrevo.
Estou bem,
os dedos permanecem altos
e apontam nortes como bússolas.
Sossego agora.
Guarda uma fatia do teu silêncio
para te engolir de perto.
Volto no Verão.

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